Ponho o lápis no papel e espero que as idéias fluam. Doce
ilusão! Faz semanas que não escrevo uma só parágrafo. Tolice minha ficar
encarando esta folha. O que será de um escritor sem inspiração como eu?
Levanto-me e jogo o caderno e o lápis dentro da minha velha e surrada
mochila. Deixo a mesa desarrumada, assim como ficou a semana inteira.
Sobre ela um prato com um pedaço de pizza frio e meio comido, uma xícara
com café frio e uma montanha de papéis amassados. Engraçado a
facilidade com que as idéias viram bolinhas de papel… Parto então para o
bar do Flori.
Floriano é um cara bacana. Deve ter uns oitenta e tantos anos. O
pouco cabelo que lhe resta é branco como algodão, seus olhos são
acinzentados e sua pele é pálida e fina, como se tivesse sido esticada
sobre o seus ossos. Apesar da idade o homem trabalha todos os dias, faça
chuva ou faça sol, sem nunca tirar aquele sorriso largo e amigável do
rosto. Acho que o conheço desde sempre.
O bar do Floriano, a “Birosca”, é um lugarzinho calmo e bem
localizado, no centro da cidade. Além de ficar a apenas dois quarteirões
do meu apartamento. O velho abriu o lugar na década de quarenta e
mantém a decoração original: paredes verdes, tolhas-de-mesa de xadrez,
mesas e bancos de ferro. Mesmo sendo bastante conhecida, a Birosca é
frequentada apenas por um seleto grupo de intelectuais e escritores
fracassados, como eu.
Sento à mesa de sempre e tiro o caderno da mochila. Já com o lápis em
punho, me ponho a encarar novamente a folha em branco. Ela me propõe um
desafio em que eu sei que fracassarei: escreva! Maldigo minha sorte,
levanto a cabeça e grito:
- Flori, meu velho, desce uma cerveja que hoje tá foda!
E lá vem o velho com uma garrafa de cerveja e dois copos. Suas mãos
tremem, deve ser a idade. Ainda assim o sorriso não abandona o seu
rosto, como se ele estivesse prestes a explodir em uma grande
gargalhada. Põe os copos na mesa, abre a garrafa com o próprio anel e
diz:
- Por minha conta, Alemão. Isso, é claro, se me deixar que te acompanhe.
Odiava quando me chamavam de alemão. Eu nem era loiro, porra! Mas
como eu estava seco por uma cerveja gelada, ainda mais de graça,
concordei.
Floriano sentou-se do meu lado e me encarou por alguns segundos.
Bebemos um pouco, falamos de futebosl e de mulheres. Nesse ponto o
sorriso do velho vacila. Ele suspira e seus olhos ficam marejados.
Perfeitamente compreensível, já que sua mulher morrera alguns anos
atrás.
Aliás, que morte ridícula! Morreu asfixiada, engasgada com um caroço
de azeitona. Era uma boa mulher, pena que não bebia. Todas as noites
depois de fechar o bar, se sentava ao balcão, como o marido. Ele
preparava um martini, tomava o drink e dava as azeitonas para a esposa
chupar. Acho que concordamos que ela teria se saído melhor se bebesse a
porcaria do martini e deixasse as azeitonas de lado.
- Amélia, minha querida… – suspirava Flori – Amélia era que era mulher de verdade!
A história dos dois até que era interessante. O pai de Amélia era
dono da metade da cidade. Um dos homens mais ricos do Brasil, nos anos
quarenta. Ele não gostava nada que a filha namorasse com um rapaz
humilde como Floriano. Então os dois casaram sem o concentimento do
figurão e fugiram. O homem resolveu caçar Flori por todos os lugares,
decidido a acabar com a vida do perrapado. No último momento, porém,
comoveu-se com o amor que a filha sentia pelo rapaz, que a fez se
interpor entre o ele, armado, e o marido. Sendo assim, abençoou a união.
Apesar disso, o único bem do ricaço herdado por sua filha foi o sobrado
de dois andares que viria a se tornar a Birosca.
Várias vezes tentara convencer o Flori de deixar-me escrever tal
história, mas ele dizia que aquilo envolvia pessoas importantes demais e
que poderia ser perigoso. Eu duvidava que qualquer um que tivesse se
envolvido nesse episódio, exceto pelo próprio Floriano, estivesse vivo.
Pela amizade que tinha com ele, respeitei a sua vontade.
Terminei a cerveja, me despedi do velho e fui-me embora. Andei todo o
caminho até minha casa cabisbaixo e chutando, aqui e ali, pedrinhas que
apareciam no meu caminho. O tempo inteiro maldisse a minha sorte: ter
uma história como aquela nas mãos e sofrer por não ter o que escrever.
Maldita falta de inspiração!