quinta-feira, 13 de junho de 2013

A Maldição da Deusa (Parte 1)

Era a primeira vez que eu ia àquela livraria. Todos os dias, a caminho do trabalho, via a placa tosca e apagada que dizia “Livros Raros”, mas nunca entrara no local. Era uma lojinha pequena e a vitrine abarrotada de volumes grossos e de aparência antiga atiçavam a minha curiosidade, porém eu estava sempre atrasada ou com pressa para resolver algum assunto.
Sou, ou pelo menos era, analista de sistemas em uma empresa em Manhattan. Minha cabeça, na maior parte do tempo, está ocupada com o cálculo de alguma derivada ou algo assim. Minha verdadeira paixão, no entanto, são os livros. Todos: qualquer tamanho, cor ou assunto. Morria de vontade de entrar naquela loja e passar a tarde inteira fuçando cada volume, mas meu trabalho nunca me permitia o luxo de uma tarde de folga. No único dia que eu não trabalhava, domingo, a pequena lojinha se encontrava fechada e não havia nenhuma indicação para contato.
Bom, agora eu não teria problema com isso, já que fora despedida. Meu chefe não me deu muitas explicações, disse apenas que a empresa estava precisando fazer uns cortes no pessoal e que ele tinha de decidir quem deveria ser demitido. Não sei por que ele me escolheu, talvez porque eu nunca aceitei ficar depois do trabalho para fazer “hora extra” em seu escritório. Enfim… Não valia a pena pensar sobre isso. Ele ficariam loucos sem mim, aposto.
Ao entrar na lojinha, em um primeiro momento, imaginei que estivesse sozinha. Vasculhei algumas estantes, mas, aparentemente, a maioria dos volumes não estavam escritos em inglês, mas em uma língua muito estranha, cheia de símbolos. Decidi ir mais ao fundo da loja, procurando algo que eu conseguisse ler. Foi nesse instante que uma velhinha saiu dos fundos da livraria trazendo uma pilha enorme de livros nos braços. Ela parecia ter dificuldade de andar e seus braços eram tão finos que eu me perguntei como ela conseguia carregar tudo aquilo. Corri para ajudá-la, tomando parte dos livros.
A senhora me agradeceu com um sorriso. Eu preferiria que ela não tivesse feito isso. O seu rosto era murcho, o cabelo sujo e um de seu olhos era opaco e parecia não mais ver. Quando ela sorriu para mim sua imagem só piorou: havia um único dente em sua boca, escurecido e prestes a cair. Não sabia quantos anos a mulher tinha, mas a cada segundo ela parecia mais velha e encarquilhada.
Quando ela falou comigo me surpreendi novamente:
- O que procura, querida?
Sua voz era doce e melodiosa, não parecia a voz de alguém idoso, mas uma pessoa muito mais jovem. Fiquei em silêncio por algum tempo e, quando a senhora repetiu a pergunta, balbuciei:
- Hum… Não estou procurando um livro especificamente, só queria encontrar algum em inglês, mas parece que aqui não tem nenhum.
A velha sorriu mais uma vez, exibindo seu único dente. Pegou na minha mão e me arrastou para os fundos da loja. Enquanto me guiava, me explicou:
- Aqui tem muitos livros raros, querida. A maioria está escrita em céltico, tócario e frígio, mas acredito que possamos encontrar alguns volumes em inglês. Acho que sei qual o livro perfeito para você… Ande, ande! Está bem aqui…
A mulher tirou um volume bem pequeno debaixo de uma grande pilha e me mostrou. Sem dúvida era bem antigo. A capa era de um material que eu não conseguia definir. Couro, talvez. Havia vários daqueles símbolos estranhos na capa, mas o título estava em inglês e parecia bordado em ouro.
- “The Tales of Danu” – li – Os contos de Danu. Sobre o que fala esse livro?
Para meu desagrado, a senhora voltou a sorrir:
- São algumas lendas dos povos bárbaro. Contos de amor, romance e, se você gosta de histórias de fantasma, terror.
Ela falou aquilo de uma maneira que, mesmo sua voz doce, soou maliciosa aos meus ouvidos. Observei mais uma vez o volume em minhas mãos, parecia ser caro, mas eu não sairia daquele lugar de mãos abanando.
- Vou levar, quanto custa?
- Ah, querida, – suspirou a velha – esse livro não tem preço. É muito raro, herança de família… Mas como eu vejo que você se interessou muito por ele, eu posso dá-lo… Uma velha como eu, sem filhos, não poderia levar uma preciosidade dessas para o túmulo…
Olhei para a mulher desconfiada, depois para o livro. Balancei a cabeça e disse:
- Fico muito grata, mas não posso aceitar. Se isso é tão valioso quanto a senhora diz, eu não levá-lo de graça, muito menos comprá-lo.
- Ora, vamos! Aceite! Você foi despedida hoje, merece algo que lhe anime.
- Bem, se é assim… Espere, como a senhora sabe que fui despedida? Eu não falei nada sobre isso.
A velha teve um acesso de tosse, depois respondeu:
- Apenas o palpite de uma pessoa mais experiente. Vejo você passar por aqui todos os dias, olhar pela vitrine e nunca entrar na loja. Imaginei ai vê-la na loja que, pela sua carinha triste, tivesse perdido o emprego. Acertei, não? Vamos, aceite o presente de uma pobre velha.

Sorri, meio sem jeito, e aceitei o livro. Ao sair da loja escutei um barulho que parecia a mistura de um grito agudo e uma gargalhada.

A Casa e a Flor (Parte 2)

Mas chegou a época da faculdade e tivemos de seguir rumos diferentes. Eu queria aprender outras línguas e trabalhar como tradutor e em nossa pequena universidade não havia um bom curso nessa área. Eu teria que me mudar para a capital e ficar por lá por uns quatro anos. Mia queria estudar Biologia, ser uma botânica, e o ensino local parecia ser o suficiente para ela.  Por várias vezes eu brinquei:

“Botânica, hein? Cuidado para não se perder no meio das flores…”.

Ela revirava os olhos com piadinha sem graça e me dava um soco no braço. Até ali nós nunca tivéramos nada além de uma grande amizade. Quer dizer, não que eu só quisesse ser amigo dela ou ela de mim, mas éramos covardes demais para ter alguma iniciativa. No nosso último dia juntos, porém, algo aconteceu.
Passáramos boa parte do dia arrumando as minhas coisas. Quando a tarde caiu e sol começava a se pôr, fomos visitar a Casa. Temi que aquela fosse a última vez que a visse, pois a estrutura do lugar parecia mais decrépita que nunca. A antiga biblioteca desmoronara e, a cada passo que dávamos, a estrutura inteira parecia ranger em protesto. Não acreditava que após quatro anos ela ainda estaria de pé.
Encostei-me à parede perto da janela e ela se sentou no chão com os braços em volta das pernas. Por algum tempo ficamos calados, olhando o sol sumir no horizonte. Quando a noite caiu, Mia se levantou e me deu um abraço. Senti o seu perfume, rosas. Nunca o tinha sentido de uma forma tão intensa, tão profunda. Afastei-a um pouco de mim e olhei em seus olhos. Não havia mais luz ali, apenas uma cálida tristeza. Beijei-lhe os lábios e afaguei-lhe os cabelos. Abraçamos-nos novamente e ficamos assim por algum tempo.
No dia seguinte eu me levantei um pouco menos ansioso para ir à universidade. Mia e eu havíamos conversado muito na noite anterior. Ela sabia que quatro anos era muito tempo, mas prometera que estaria ali quando eu voltasse. Mia não queria mais ninguém além de mim. E eu só queria saber da minha flor…

***

O curso ainda não tinha terminado e a cada vez eu visitava menos a minha antiga cidade. Não por que eu não quisesse, mas por que os estudos consumiam todo o meu tempo livre. No último ano consegui um estágio em uma editora, trabalhando na parte de tradução.
A essa altura eu já falava algumas línguas e como demonstrava bastante interesse o chefe da equipe de tradução resolveu me dar uma oportunidade. Era um livro pequeno, 180 páginas em inglês, mas já era um começo. A cada texto que traduzia me sentia mais realizado, me alegria só não era completa porque estava longe de Mia.
Os quatro anos se transformaram em cinco. Não podia abandonar meu emprego na editora, quem sabe se eu conseguiria outra oportunidade como aquela. Foi quando recebi o telefonema.

Voltei para minha cidade, desesperado. Não podia acreditar que aquilo tinha acontecido. Nada mais importava, nem carreira, nem livros. Eu só a queria, queria ela de volta. Mas não cheguei lá a tempo. Mia estava morta.
Ela continuava indo à Casa todos os dias, disseram-me. Tinha feito seu trabalho de conclusão da faculdade sobre uma planta, uma flor, que crescia por lá. Os seus pais, no entanto, acreditavam que ela só ia lá para se lembrar de mim. E foi lá que aconteceu: o teto da sala de estar desabou sobre sua cabeça. Alguns meninos que brincavam na rua viram e chamaram os paramédicos, mas quando eles chegaram, ela já havia morrido.
Maldita Casa! Deviam ter demolido aquele lixo há muito tempo… Não, fora lá que eu conhecera Mia, foi aquele lugar que nos uniu. Ali nos abraçamos pela primeira vez. Fora lá o nosso primeiro beijo… Não, a culpa era minha, eu a abandonara. Só me restava uma opção…
Enquanto caminhava até a Casa me lembrei de quando éramos crianças. Mia adorava as plantas que cresciam naquela casa. Sabia o nome de todas, além da utilidade de cada uma. Certa vez eu encontrei um arbusto que dava frutos. Eram pequenas contas pretas que tinha um aroma adocicado. Já estava para comer as frutinhas quando um bofetão me pegou de surpresa. Mia estava ofegante, as bochechas vermelhas e os olhos cheios de lágrimas.

“Você esta louco, cabeça de traça?”.

“Por quê? Eu só ia comer uma destas frutas. Não estão nem quentes, olha…”.

“Do que adianta ler tantos livros de romance e não saber o que pode ou não pode comer? Vê àquelas flores no arbusto, aquelas que parecem sinos cor-de-rosa? Isso é beladona, é venenosa!”.

Mia me fez jogar as frutas fora na mesma hora e não me deixou mais chegar perto do arbusto de beladona...
Não precisei procurar muito. As flores rosa do arbusto se destacavam à luz do luar. O vento as fazia balançar e isso as tornava mais parecidas com sinos. Peguei um punhado de frutos e sentei com minhas costas apoiadas na parede. Com o desmoronamento da biblioteca e da sala de estar não restara muito da Casa. O lugar parecia mais um cemitério e, se eu ainda fosse criança, não coseguiria me divertir em um local como aquele.
Ainda assim, fiquei. Olhei para o céu. As estrelas brilhavam com mais intensidade ali do que na capital. Eu nunca deveria ter deixado aquele lugar. Nesse momento comecei a entender aquele livro de Shakespeare, um amor que não admite a separação. Tomei coragem e comi os frutos de beladona. Eram amargos, apesar de seu cheiro doce. Em pouco tempo minha visão ficou turva. Estendi a mão para as estrelas, então tudo escureceu.

***

Acordei em uma cama macia, enrolado em lençóis brancos. Levantei-me confuso. Não funcionara. Por certo alguém me encontrara e me levara para o hospital. Uma lágrima rolou pelo meu rosto, separado de Mia mais uma vez.  Saí de casa e caminhei pelas ruas. Aquela era minha vizinhança, mas nada parecia estar em foco. Tudo era como um grande borrão. Presumi que ainda estivesse sobre o efeito do veneno.
Nesse momento eu passei por uma casa estranha e me detive para observá-la. Colunas brancas sustentavam um telhado avermelhado, a porta era lustrosa e tinha uma aparência muito sólida e o vento fazia as cortinas azuis ondularem pelas grandes janelas abertas. Não reconheci aquele lugar, tinha certeza que me lembraria de um lugar como aquele. Quem será que morava lá?
Foi então que senti aquele aroma. Um cheiro profundo e inebriante. Rosas. Alguém acenava pra mim de dentro da Casa.


Ps: para ler a primeira parte, acesse:

A Casa e a Flor (Parte 1)

A noite estava silenciosa. Parei por um instante e, antes de subir os degraus, dei uma boa olhada na casa. Sem dúvida era velha. Fora construída há muito tempo por uma família riquíssima, mas à décadas que estava completamente abandonada.
A hera tomara conta das imponentes colunas, os degraus estavam esverdeados pelo musgo e a porta já não passava de um pedaço de madeira podre e enegrecida. Já não restava mais nada da pintura original, mas ainda era bela. A casa não pertencia a ninguém e, ao mesmo tempo, pertencia a todos. Para as crianças era um território novo a ser explorado. Os adultos tomavam a construção como um adorno da paisagem. Já os velhos viam na casa um símbolo de força e resistência. Era um lugar em que os sentidos se confundiam, onde a razão se tornava emoção. Foi lá que nos conhecemos, eu e Mia.
Estava sentado na janela do casarão lendo um livro que pegara na biblioteca municipal. Era uma peça de Shakespeare, eu acho. Lia e relia o trecho onde a garota, ajoelhada ao lado de seu amado, apunhalava-se para acompanha-lo na morte. Não conseguia acreditar que alguém  pudesse amar uma outra pessoa ao ponto de se matar. Me parecia improvável.
“Quanta bobagem…” resmunguei para mim mesmo.
De repente escutei uma voz ao meu lado perguntar:
“É realmente bobagem querer ficar com aquele que ama?”
O susto foi tão grande que eu virei de costas e cai da janela. Fiquei atordoado por alguns segundos e quando finalmente consegui me levantar vi uma garota encostada em uma coluna, rindo de mim. Ela era magricela e cheia de sardas. Seus cabelos negros estavam presos em um rabo de cavalo que saia pela parte de trás de seu boné vermelho.  Contudo, seus olhos eram o que ela tinha de mais belo. Eram da cor de caramelo e estavam cheios de luz e alegria.
Logo nos tornamos amigos inseparáveis. Estávamos sempre juntos e gastávamos a maior parte do nosso tempo na casa.  Estudávamos em escolas diferentes, mas passávamos a tarde inteira na companhia um do outro. Não demorou muito tempo para que nossa amizade se tornasse algo mais forte. Nós sabíamos que isso iria acontecer e não fizemos nada para evitar. Antes tivéssemos feito…
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segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Claustrofobico.

       Sabe aquela sensação de que você está preso em uma caixa? Bom, é uma sensação terrível. Principalmente pra quem tem claustrofobia, como eu.

Sofro com esse medo desde os meus dez anos, quando fiquei preso em um maldito elevador. Faltou luz e eu fiquei sozinho no escuro, todo encolhido dentro daquela maldita caixinha de metal. Conseguia apenas gritar, minhas pernas pareciam manteiga e eu tremia loucamente. Nada melhorou quando me tiraram de lá. Passei uma semana em estado de choque, sem trocar uma palavra com quem quer que fosse.
Esse pavor me acompanhou a vida inteira. Não podia entrar em lugares pequenos, corredores apertados e nem em  lugares com o teto baixo . Elevadores você pode imaginar: não passava nem perto. Só de olhar para o brilho das reluzentes portas de metal um arrepio gélido subia pela minha coluna. 
Sim, ficar preso me traumatizou mais do que qualquer um de vocês pode imaginar. A maioria das crianças tinha pesadelos com monstros, palhaços e bonecos assassinos. Eu  tinha terríveis experiências de terror noturno imaginando que as paredes do meu quarto estavam se fechando ao meu redor. Chorava, me debatia e só conseguia dormir quando o meu pai me levava para a varanda e me falava sobre a imensidão do espaço. Um lugar aberto, sem paredes e sem limites. Um lugar simplesmente feito para mim.
É, por muitos anos meu sonho foi ser astronauta. Não deu certo. Assim que eu descobri que o único meio de se chegar ao espaço era entrar em um elevadorzinho que te conduziria a uma salinha na qual você ficaria por horas... Eu desisti. Não me arrependo, desistiria mil vezes se precisasse.
Com tudo isso que eu lhes contei vocês podem entender por que estou extremamente angustiado, inexplicavelmente aterrorizado e indubitávelmente desesperado. Por que da maneira como vivi meus 34 anos, longe de tudo o que fosse pequeno, apertado e estreito , eu nunca imaginaria que terminaria assim. Por que meu pior pesadelo se tornou realidade: eu fui enterrado vivo!

O Velho Soldado

Acendi a luz do lampião com cuidado. Já estava quase na hora do pequeno chegar. Desde o começo do mês aquele jovenzinho vinha ao anoitecer para conversar um pouco comigo. Eu adorava poder falar com ele.
Como sempre o menino chegou com um sorriso largo no rosto. Qualquer pessoa estranharia, pensaria maldade de ver um velho como eu conversando com um garotinho como aquele. Mas eu nunca tive nenhuma má intenção com ele. Na verdade ele fora meu primeiro amigo em muitos anos. Depois que você fica velho as pessoas se esquecem de você…
- Seu Bastião, boa noite! -  tilintou o pequeno.
- Boa noite, Marcelo. – respondi – Como anda meu pequeno soldado?
O garoto riu. Adorava quando eu o chamava de soldado, sentia-se importante. Sentou no batente, do lado da minha cadeira. Começou a me contar como fora o seu dia, com quem brincara e qual fora a brincadeira. Falou-me sobre os cômodos novos que explorara na casa das tias, duas velhas solteironas que moravam no fim da rua, na qual estava passando uma temporada. Além de outras coisas que  preenchem a vida das crianças de hoje em dia.
Quando terminou o garoto estava sem folêgo de tanto falar. Olhou para mim, ainda sorrindo e me pediu que contasse como o meu dia havia sido. Como sempre eu lhe contei que o havia sido entediante e que não tinha nenhuma novidede, mas se ele quisesse ouvir alguma historia da minha juventude eu adoraria entretê-lo. Ele logo se animou. Eu via muito de mim naquele garoto.
Quando mais jovem eu fora soldado. Lutei em revoluções, guerras e em toda sorte de levantes. Comecei minha carreira bem jovem, 16 anos, portanto também me aposentei cedo. Não soube levar uma aposentadoria tranquila, porém. A guerra estava em meu sangue e a calmaria que o envelhecimento trazia não me caiu bem. Aos 50 anos me suicidei, nesta mesma casa onde meu espírito tem vagado.
Boatos se espalharam e muitas pessoas tinha medo de se aproximar da minha casa. Diziam ser assombrada. Bom, de certa forma era verdade, eu estava lá. Mas então esse garoto apareceu e ele não tinha medo de mim. Ele sabia que eu já não estava mais vivo, mas isso não parecia incomodá-lo.  Todo noite ele vinha e eu contava-lhe os meus feitos. Ele parecia satisfeito com isso. Eu também estava.
***
Nossa como eu adorava aquele velho! As histórias deles eram incríveis. Ele lutara em guerras, usara armas e matara pessoas. Fora um herói. Eu queria ser um herói. Penso que seja difícil que isso aconteça, devido as circunstâncias…
Depois que ele terminou a história nós nos despedimos e fui embora. No caminho eu pensava como o velho fora solitário em vida. Esse devia ser um dos sacríficios de ser um grande soldado. O homem se isolara de tal modo que nem sabia que no fim da rua não havia um casarão, mas sim um cemitério.
Era lá que eu estava enterrado. Morri ainda muito novo. Nunca poderei ser um soldado. Mas ainda terei o velho e ele poderá me contar suas histórias… Para sempre…

Birosca


Ponho o lápis no papel e espero que as idéias fluam. Doce ilusão! Faz semanas que não escrevo uma só parágrafo. Tolice minha ficar encarando esta folha. O que será de um escritor sem inspiração como eu?
Levanto-me e jogo o caderno e o lápis dentro da minha velha e surrada mochila. Deixo a mesa desarrumada, assim como ficou a semana inteira. Sobre ela um prato com um pedaço de pizza frio e meio comido, uma xícara com café frio e uma montanha de papéis amassados. Engraçado a facilidade com que as idéias viram bolinhas de papel… Parto então para o bar do Flori.
Floriano é um cara bacana. Deve ter uns oitenta e tantos anos. O pouco cabelo que lhe resta é branco como algodão, seus olhos são acinzentados e sua pele é pálida e fina, como se tivesse sido esticada sobre o seus ossos. Apesar da idade o homem trabalha todos os dias, faça chuva ou faça sol,  sem nunca tirar aquele sorriso largo e amigável do rosto. Acho que o conheço desde sempre.
O bar do Floriano, a “Birosca”, é um lugarzinho calmo e bem localizado, no centro da cidade. Além de ficar a apenas dois quarteirões do meu apartamento. O velho abriu o lugar na década de quarenta e mantém a decoração original: paredes verdes, tolhas-de-mesa de xadrez, mesas e bancos de ferro. Mesmo sendo bastante conhecida, a Birosca é frequentada apenas por um seleto grupo de intelectuais e escritores fracassados, como eu.
Sento à mesa de sempre e tiro o caderno da mochila. Já com o lápis em punho, me ponho a encarar novamente a folha em branco. Ela me propõe um desafio em que eu sei que fracassarei: escreva! Maldigo minha sorte, levanto a cabeça e grito:
- Flori, meu velho, desce uma cerveja que hoje tá foda!
E lá vem o velho com uma garrafa de cerveja e dois copos. Suas mãos tremem, deve ser a idade. Ainda assim o sorriso não abandona o seu rosto, como se ele estivesse prestes a explodir em uma grande gargalhada. Põe os copos na mesa, abre a garrafa com o próprio anel e diz:
- Por minha conta, Alemão. Isso, é claro, se me deixar  que te acompanhe.
Odiava quando me chamavam de alemão. Eu nem era loiro, porra! Mas como eu estava seco por uma cerveja gelada, ainda mais de graça, concordei.
Floriano sentou-se do meu lado e me encarou por alguns segundos. Bebemos um pouco, falamos de futebosl e de mulheres. Nesse ponto o sorriso do velho vacila. Ele suspira e seus olhos ficam marejados. Perfeitamente compreensível, já que sua mulher morrera alguns anos atrás.
Aliás, que morte ridícula! Morreu asfixiada, engasgada com um caroço de azeitona. Era uma boa mulher, pena que não bebia. Todas as noites depois de fechar o bar, se sentava ao balcão, como o marido. Ele preparava um martini, tomava o drink e dava as azeitonas para a esposa chupar. Acho que concordamos que ela teria se saído melhor se bebesse a porcaria do martini e deixasse as azeitonas de lado.
- Amélia, minha querida… – suspirava Flori – Amélia era que era mulher de verdade!
A história dos dois até que era interessante. O pai de Amélia era dono da metade da cidade. Um dos homens mais ricos do Brasil, nos anos quarenta. Ele não gostava nada que a filha namorasse com um rapaz humilde como Floriano. Então os dois casaram sem o concentimento do figurão e fugiram.  O homem  resolveu caçar Flori por todos os lugares, decidido a acabar com a vida do perrapado. No último momento, porém, comoveu-se com o amor que a filha sentia pelo rapaz, que a fez se interpor entre o ele, armado, e o marido. Sendo assim, abençoou a união. Apesar disso, o único bem do ricaço herdado por sua filha foi o sobrado de dois andares que viria a se tornar a Birosca.
Várias vezes tentara convencer o Flori de deixar-me escrever tal história, mas ele dizia que aquilo envolvia pessoas importantes demais e que poderia ser perigoso. Eu duvidava  que qualquer um que tivesse se envolvido nesse episódio, exceto pelo próprio Floriano, estivesse vivo. Pela amizade que tinha com ele, respeitei a sua vontade.
Terminei a cerveja, me despedi do velho e fui-me embora. Andei todo o caminho até minha casa cabisbaixo e chutando, aqui e ali, pedrinhas que apareciam no meu caminho.  O tempo inteiro maldisse a minha sorte: ter uma história como aquela nas mãos e sofrer por não ter o que escrever.
Maldita falta de inspiração!

Jack


Já é tarde da noite. Como sempre, a esta hora, a rua esta quase deserta. A iluminação é fraca e provém na maior parte da luz da lua. Ocasionalmente, avisto um poste ou outro, mas sempre quebrado. Provavelmente vandalizado pelos tipos que por aqui passam.
Whitechapel já foi um respeitável ponto comercial, não mais.  A calçada está coberta de lixo e fezes, além de servir de ponto de convergência para a escória da raça humana: ladrões, prostitutas, pederastas, além de outras párias da sociedade. Aquele lugar precisa ser limpo. E quem melhor do que eu para fazer o serviço?
Não digo que sou superior eles. Na verdade, sou um monstro. Meus irmãos, minha esposa, meus filhos… Todos me odiariam se soubessem da verdade. Mas é mais forte do que eu! Sinto como se elas me chamassem, ansiando por serem punidas. Penso que somente com o sangue delas poderei lavar seus pecados, salvá-las… É isso! Eu não sou um monstro, sou um redentor! Eu irei redimir suas iniquidades e levá-las a salvação…
Esse pensamento me conforta…
Já escolhi minha vítima. É uma vadia ordinária que faz ponto perto da ‘O Muco’. Ela até que é bonita. Loira, baixinha, olhos esverdeados. Lembra-me muito a minha esposa, será perfeito. Devo fazê-la sofrer? Claro! Assim falarão ainda mais do caso e eu poderei rir-me de todos os tolos, que nunca saberão que fui eu.
Posso vê-la daqui. Acabou de sair de um beco, acompanhada de um velho seboso e pançudo. Deve ter sido bem desagradável, pela expressão no rosto dela. Veja: ele ainda nem abotoou as calças! Deus, que nojo…! O patife sorri? Quem sabe meu cutelo terá tempo para cuidar de mais um serviço esta noite… Mas não irei me preocupar com isso agora, preciso me focar no meu objetivo. Hoje a noite começa minha cruzada para livrar Londres dos ratos imundos que povoam suas ruas.
Chego até ela e pergunto se ainda aceita mais um serviço. Algumas delas só procuram o suficiente para conseguir um teto durante a noite. Eu não posso forçá-la. Chamaria muita atenção. Ela deve vir comigo porque quer. Sou como o Flautista Mágico dos contos infantis, atraindo minha presa para uma armadilha definitiva.
A vadia aceita.  A levo a um beco escuro e deserto. Beijo aquela boca imunda enquanto puxo a minha faca de dentro do sobretudo. Ela percebe o movimento, abre os olhos e vê a lâmina em minha mão, já erguida acima de sua cabeça. Aterrorizada, a mulher grita:
- Meu Deus! O quê isso significa? Quem é você?
Um sorriso surge no meu rosto e respondo:
- Isto é sua salvação, meretriz! E eu… EU SOU JACK!