quinta-feira, 13 de junho de 2013

A Casa e a Flor (Parte 2)

Mas chegou a época da faculdade e tivemos de seguir rumos diferentes. Eu queria aprender outras línguas e trabalhar como tradutor e em nossa pequena universidade não havia um bom curso nessa área. Eu teria que me mudar para a capital e ficar por lá por uns quatro anos. Mia queria estudar Biologia, ser uma botânica, e o ensino local parecia ser o suficiente para ela.  Por várias vezes eu brinquei:

“Botânica, hein? Cuidado para não se perder no meio das flores…”.

Ela revirava os olhos com piadinha sem graça e me dava um soco no braço. Até ali nós nunca tivéramos nada além de uma grande amizade. Quer dizer, não que eu só quisesse ser amigo dela ou ela de mim, mas éramos covardes demais para ter alguma iniciativa. No nosso último dia juntos, porém, algo aconteceu.
Passáramos boa parte do dia arrumando as minhas coisas. Quando a tarde caiu e sol começava a se pôr, fomos visitar a Casa. Temi que aquela fosse a última vez que a visse, pois a estrutura do lugar parecia mais decrépita que nunca. A antiga biblioteca desmoronara e, a cada passo que dávamos, a estrutura inteira parecia ranger em protesto. Não acreditava que após quatro anos ela ainda estaria de pé.
Encostei-me à parede perto da janela e ela se sentou no chão com os braços em volta das pernas. Por algum tempo ficamos calados, olhando o sol sumir no horizonte. Quando a noite caiu, Mia se levantou e me deu um abraço. Senti o seu perfume, rosas. Nunca o tinha sentido de uma forma tão intensa, tão profunda. Afastei-a um pouco de mim e olhei em seus olhos. Não havia mais luz ali, apenas uma cálida tristeza. Beijei-lhe os lábios e afaguei-lhe os cabelos. Abraçamos-nos novamente e ficamos assim por algum tempo.
No dia seguinte eu me levantei um pouco menos ansioso para ir à universidade. Mia e eu havíamos conversado muito na noite anterior. Ela sabia que quatro anos era muito tempo, mas prometera que estaria ali quando eu voltasse. Mia não queria mais ninguém além de mim. E eu só queria saber da minha flor…

***

O curso ainda não tinha terminado e a cada vez eu visitava menos a minha antiga cidade. Não por que eu não quisesse, mas por que os estudos consumiam todo o meu tempo livre. No último ano consegui um estágio em uma editora, trabalhando na parte de tradução.
A essa altura eu já falava algumas línguas e como demonstrava bastante interesse o chefe da equipe de tradução resolveu me dar uma oportunidade. Era um livro pequeno, 180 páginas em inglês, mas já era um começo. A cada texto que traduzia me sentia mais realizado, me alegria só não era completa porque estava longe de Mia.
Os quatro anos se transformaram em cinco. Não podia abandonar meu emprego na editora, quem sabe se eu conseguiria outra oportunidade como aquela. Foi quando recebi o telefonema.

Voltei para minha cidade, desesperado. Não podia acreditar que aquilo tinha acontecido. Nada mais importava, nem carreira, nem livros. Eu só a queria, queria ela de volta. Mas não cheguei lá a tempo. Mia estava morta.
Ela continuava indo à Casa todos os dias, disseram-me. Tinha feito seu trabalho de conclusão da faculdade sobre uma planta, uma flor, que crescia por lá. Os seus pais, no entanto, acreditavam que ela só ia lá para se lembrar de mim. E foi lá que aconteceu: o teto da sala de estar desabou sobre sua cabeça. Alguns meninos que brincavam na rua viram e chamaram os paramédicos, mas quando eles chegaram, ela já havia morrido.
Maldita Casa! Deviam ter demolido aquele lixo há muito tempo… Não, fora lá que eu conhecera Mia, foi aquele lugar que nos uniu. Ali nos abraçamos pela primeira vez. Fora lá o nosso primeiro beijo… Não, a culpa era minha, eu a abandonara. Só me restava uma opção…
Enquanto caminhava até a Casa me lembrei de quando éramos crianças. Mia adorava as plantas que cresciam naquela casa. Sabia o nome de todas, além da utilidade de cada uma. Certa vez eu encontrei um arbusto que dava frutos. Eram pequenas contas pretas que tinha um aroma adocicado. Já estava para comer as frutinhas quando um bofetão me pegou de surpresa. Mia estava ofegante, as bochechas vermelhas e os olhos cheios de lágrimas.

“Você esta louco, cabeça de traça?”.

“Por quê? Eu só ia comer uma destas frutas. Não estão nem quentes, olha…”.

“Do que adianta ler tantos livros de romance e não saber o que pode ou não pode comer? Vê àquelas flores no arbusto, aquelas que parecem sinos cor-de-rosa? Isso é beladona, é venenosa!”.

Mia me fez jogar as frutas fora na mesma hora e não me deixou mais chegar perto do arbusto de beladona...
Não precisei procurar muito. As flores rosa do arbusto se destacavam à luz do luar. O vento as fazia balançar e isso as tornava mais parecidas com sinos. Peguei um punhado de frutos e sentei com minhas costas apoiadas na parede. Com o desmoronamento da biblioteca e da sala de estar não restara muito da Casa. O lugar parecia mais um cemitério e, se eu ainda fosse criança, não coseguiria me divertir em um local como aquele.
Ainda assim, fiquei. Olhei para o céu. As estrelas brilhavam com mais intensidade ali do que na capital. Eu nunca deveria ter deixado aquele lugar. Nesse momento comecei a entender aquele livro de Shakespeare, um amor que não admite a separação. Tomei coragem e comi os frutos de beladona. Eram amargos, apesar de seu cheiro doce. Em pouco tempo minha visão ficou turva. Estendi a mão para as estrelas, então tudo escureceu.

***

Acordei em uma cama macia, enrolado em lençóis brancos. Levantei-me confuso. Não funcionara. Por certo alguém me encontrara e me levara para o hospital. Uma lágrima rolou pelo meu rosto, separado de Mia mais uma vez.  Saí de casa e caminhei pelas ruas. Aquela era minha vizinhança, mas nada parecia estar em foco. Tudo era como um grande borrão. Presumi que ainda estivesse sobre o efeito do veneno.
Nesse momento eu passei por uma casa estranha e me detive para observá-la. Colunas brancas sustentavam um telhado avermelhado, a porta era lustrosa e tinha uma aparência muito sólida e o vento fazia as cortinas azuis ondularem pelas grandes janelas abertas. Não reconheci aquele lugar, tinha certeza que me lembraria de um lugar como aquele. Quem será que morava lá?
Foi então que senti aquele aroma. Um cheiro profundo e inebriante. Rosas. Alguém acenava pra mim de dentro da Casa.


Ps: para ler a primeira parte, acesse:

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