Mas chegou a época da
faculdade e tivemos de seguir rumos diferentes. Eu queria aprender outras
línguas e trabalhar como tradutor e em nossa pequena universidade não havia um
bom curso nessa área. Eu teria que me mudar para a capital e ficar por lá por
uns quatro anos. Mia queria estudar Biologia, ser uma botânica, e o ensino
local parecia ser o suficiente para ela.
Por várias vezes eu brinquei:
“Botânica, hein?
Cuidado para não se perder no meio das flores…”.
Ela revirava os olhos
com piadinha sem graça e me dava um soco no braço. Até ali nós nunca tivéramos
nada além de uma grande amizade. Quer dizer, não que eu só quisesse ser amigo
dela ou ela de mim, mas éramos covardes demais para ter alguma iniciativa. No
nosso último dia juntos, porém, algo aconteceu.
Passáramos boa parte do
dia arrumando as minhas coisas. Quando a tarde caiu e sol começava a se pôr,
fomos visitar a Casa. Temi que aquela fosse a última vez que a visse, pois a
estrutura do lugar parecia mais decrépita que nunca. A antiga biblioteca desmoronara
e, a cada passo que dávamos, a estrutura inteira parecia ranger em protesto.
Não acreditava que após quatro anos ela ainda estaria de pé.
Encostei-me à parede
perto da janela e ela se sentou no chão com os braços em volta das pernas. Por
algum tempo ficamos calados, olhando o sol sumir no horizonte. Quando a noite
caiu, Mia se levantou e me deu um abraço. Senti o seu perfume, rosas. Nunca o
tinha sentido de uma forma tão intensa, tão profunda. Afastei-a um pouco de mim
e olhei em seus olhos. Não havia mais luz ali, apenas uma cálida tristeza.
Beijei-lhe os lábios e afaguei-lhe os cabelos. Abraçamos-nos novamente e
ficamos assim por algum tempo.
No dia seguinte eu me
levantei um pouco menos ansioso para ir à universidade. Mia e eu havíamos
conversado muito na noite anterior. Ela sabia que quatro anos era muito tempo,
mas prometera que estaria ali quando eu voltasse. Mia não queria mais ninguém
além de mim. E eu só queria saber da minha flor…
***
O curso ainda não tinha
terminado e a cada vez eu visitava menos a minha antiga cidade. Não por que eu
não quisesse, mas por que os estudos consumiam todo o meu tempo livre. No
último ano consegui um estágio em uma editora, trabalhando na parte de
tradução.
A essa altura eu já
falava algumas línguas e como demonstrava bastante interesse o chefe da equipe
de tradução resolveu me dar uma oportunidade. Era um livro pequeno, 180 páginas
em inglês, mas já era um começo. A cada texto que traduzia me sentia mais
realizado, me alegria só não era completa porque estava longe de Mia.
Os quatro anos se
transformaram em cinco. Não podia abandonar meu emprego na editora, quem sabe
se eu conseguiria outra oportunidade como aquela. Foi quando recebi o
telefonema.
Voltei para minha
cidade, desesperado. Não podia acreditar que aquilo tinha acontecido. Nada mais
importava, nem carreira, nem livros. Eu só a queria, queria ela de volta. Mas
não cheguei lá a tempo. Mia estava morta.
Ela continuava indo à
Casa todos os dias, disseram-me. Tinha feito seu trabalho de conclusão da faculdade
sobre uma planta, uma flor, que crescia por lá. Os seus pais, no entanto,
acreditavam que ela só ia lá para se lembrar de mim. E foi lá que aconteceu: o
teto da sala de estar desabou sobre sua cabeça. Alguns meninos que brincavam na
rua viram e chamaram os paramédicos, mas quando eles chegaram, ela já havia
morrido.
Maldita Casa! Deviam
ter demolido aquele lixo há muito tempo… Não, fora lá que eu conhecera Mia, foi
aquele lugar que nos uniu. Ali nos abraçamos pela primeira vez. Fora lá o nosso
primeiro beijo… Não, a culpa era minha, eu a abandonara. Só me restava uma
opção…
Enquanto caminhava até
a Casa me lembrei de quando éramos crianças. Mia adorava as plantas que
cresciam naquela casa. Sabia o nome de todas, além da utilidade de cada uma.
Certa vez eu encontrei um arbusto que dava frutos. Eram pequenas contas pretas
que tinha um aroma adocicado. Já estava para comer as frutinhas quando um
bofetão me pegou de surpresa. Mia estava ofegante, as bochechas vermelhas e os
olhos cheios de lágrimas.
“Você esta louco,
cabeça de traça?”.
“Por quê? Eu só ia
comer uma destas frutas. Não estão nem quentes, olha…”.
“Do que adianta ler
tantos livros de romance e não saber o que pode ou não pode comer? Vê àquelas
flores no arbusto, aquelas que parecem sinos cor-de-rosa? Isso é beladona, é
venenosa!”.
Mia me fez jogar as
frutas fora na mesma hora e não me deixou mais chegar perto do arbusto de beladona...
Não precisei procurar
muito. As flores rosa do arbusto se destacavam à luz do luar. O vento as fazia
balançar e isso as tornava mais parecidas com sinos. Peguei um punhado de
frutos e sentei com minhas costas apoiadas na parede. Com o desmoronamento da biblioteca
e da sala de estar não restara muito da Casa. O lugar parecia mais um cemitério
e, se eu ainda fosse criança, não coseguiria me divertir em um local como
aquele.
Ainda assim, fiquei.
Olhei para o céu. As estrelas brilhavam com mais intensidade ali do que na
capital. Eu nunca deveria ter deixado aquele lugar. Nesse momento comecei a
entender aquele livro de Shakespeare, um amor que não admite a separação. Tomei
coragem e comi os frutos de beladona. Eram amargos, apesar de seu cheiro doce.
Em pouco tempo minha visão ficou turva. Estendi a mão para as estrelas, então
tudo escureceu.
***
Acordei em uma cama
macia, enrolado em lençóis brancos. Levantei-me confuso. Não funcionara. Por
certo alguém me encontrara e me levara para o hospital. Uma lágrima rolou pelo
meu rosto, separado de Mia mais uma vez.
Saí de casa e caminhei pelas ruas. Aquela era minha vizinhança, mas nada
parecia estar em foco. Tudo era como um grande borrão. Presumi que ainda estivesse
sobre o efeito do veneno.
Nesse momento eu passei
por uma casa estranha e me detive para observá-la. Colunas brancas sustentavam
um telhado avermelhado, a porta era lustrosa e tinha uma aparência muito sólida
e o vento fazia as cortinas azuis ondularem pelas grandes janelas abertas. Não
reconheci aquele lugar, tinha certeza que me lembraria de um lugar como aquele.
Quem será que morava lá?
Foi então que senti
aquele aroma. Um cheiro profundo e inebriante. Rosas. Alguém acenava pra mim de
dentro da Casa.
Ps: para ler a primeira
parte, acesse:
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